Máquina Devir
(ao meu amor)
Escrevo esse texto com o meu corpo. Você experimenta este espaço e lê estes parágrafos com o seu corpo. O corpo é a dimensão dos encontros que tecem e atravessam nossa existência. Está no corpo a nossa relação com os astros e seus movimentos, com a natureza e seus elementos, com as pessoas, a técnica e a cultura, com as palavras e com o que não cabe nelas. O que pensamos é pensado com o corpo, o que expressamos é expressado com o corpo. Esta é a nossa máquina de encontrar, de sentir, de experimentar, de desejar, de imaginar, é onde conhecemos nossos limites, mas também nosso transcender na imanência.
É potente e positivo complexificarmos nossa relação com o corpo. Podemos nos inspirar em suas dobras, poros, plasticidades, impermanências, marcas, delícias e potências para desenvolver formas próprias de vivê-lo. Nosso corpo, de substâncias e densidades tão diversas e mutantes, pode ser sempre melhor experimentado — ainda antes de interpretado.
O corpo é onde podemos ser. Nossas liberdades, desejos e potências realizam-se transbordando, apesar das brechas da repressão histórica e individual que nele carregamos. O corpo é ainda onde podemos ser diferentes: estrutura criadora de maneiras de existir. A presente exposição, Máquina Devir, individual da artista carioca Maria Lynch, surge justamente do entendimento de que é nutrindo o corpo com experiências alegres que ampliamos nossas capacidades de sentir e, com isso, nossas potências de agir. O título da mostra articula dois importantes conceitos do filósofo francês Gilles Deleuze (1925-1995), uma das grandes referências constituintes do pensamento da artista, junto de Baruch Spinoza, Friedrich Nietzsche e Henri Bergson, todos grandes pensadores do corpo e da liberdade.
Mesmo sendo mais reconhecida por suas pinturas com o uso ostensivo de cores vibrantes e contrastadas, criando especial relação entre figuras e fundos, Maria desenvolveu também diversas instalações, objetos, performances, vídeos e fotografias.
Comemorando 15 anos do início de sua produção como artista, Lynch, que desde 2013 estuda e trabalha fora do país, retorna à sua cidade natal para lançar um livro retrospectivo e realizar a presente mostra, que ocupa integralmente os espaços expositivos do Oi Futuro Ipanema com um trabalho que alcança uma radicalidade relacional inédita em sua produção.
Nessa mostra, você é convidado a aproveitar um percurso dividido em nove ambientes lúdicos, oníricos e, por vezes, perturbadores, que oferecem propostas para experimentar o corpo e suas potências. Se em algum momento perceber-se numa aproximação à ideia ou à sensação de infância é por ter se permitido conectar ao lúdico — e não mais ao fantástico, que é tristemente uma prática mais característica do adulto. Almeja-se aqui justamente a transgressão ética dos espíritos livres, uma terapia para perder a si mesmo na experiência de criação de um novo corpo a cada momento.
A intenção é que você possa carnavalizar-se corajosamente, viver crises em suas crenças, encontrar brechas, penetrá-las, transformar-se nelas, desfazê-las. Neste trabalho, sem medo, você pode deixar de lado a seriedade talvez esperada de você para poder ser capaz de criar novos sistemas de valores a partir das experiências do corpo. Em resumo, Máquina Devir é uma experiência transformadora para a obtenção de prazer, liberdade, coragem e alegria, onde pode-se tudo, fora temer.
Bernardo Mosqueira
Curador